Primeira República

A Guerra do Contestado

1912 - 1916

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Foto - Família de sertanejos se rende às forças oficiais em Canoinhas/SC, durante a Guerra do Contestado, em 1915
Fonte: Claro Jansson/Acervo Dorothy Jansson Moretti.
 

Se as narrativas históricas sobre o Brasil ocultam, sob denominações eufemísticas, as guerras e os conflitos constantes que o país sofreu ao longo de sua formação, classificando estes sempre como revolta ou insurreição de fanáticos, ignorantes ou “bárbaros” e sempre como manifestações “isoladas”, o caso da Guerra do Contestado, usado aqui como emblemático do modo de formação da nação brasileira, não nos deixa fechar os olhos para o banho de sangue sobre o qual se ergueu a nossa ordem e o nosso progresso.

Parto da escolha teórica e metodológica de analisar o conflito do movimento sertanejo do Contestado como sintoma e, ao mesmo tempo, consequência do conteúdo patrimonialista que compôs as políticas oficiais desde os tempos do Brasil Colonial. Isto é, mesmo com o passar dos anos, dos sistemas políticos (seja ele imperial ou republicano) e da base econômica (açúcar, café etc.), o Brasil se desenvolveu alicerçado em privatismos, concessões, privilégios e genocídios. Independente da “forma” específica tomada pelo governo (cujas reformas sempre vieram da parte de “cima” da camada social), o seu “conteúdo” sempre permaneceu o mesmo: uma camada rural aristocrática que jamais abriu mão de gozar dos seus direitos e privilégios. Uma elite camaleoa que soube ser colônia, ser império, ser república e que hoje sabe ser muito democrática.

A Guerra do Contestado foi um conflito local dos Estados do Paraná e de Santa Catarina. Vou me ater, portanto, apenas aos fenômenos que ali ocorreram e que considero comuns a um âmbito mais geral de acontecimentos que formaram a estrutura (baseada fundamentalmente no latifúndio monocultor) do país. Assim sendo, a camada social dos “pelados” (rebeldes sertanejos do Contestado), assim como as camadas sociais das insurreições que ocorreram por todo o país,

como a de Canudos, a Cabanagem, a dos Muckers, e centenas de outras, têm um traço comum que cumpre assinalar. Todas reivindicam a terra em que vivem e de que tiram subsistência. Mas todos demonstram que são perfeitamente capazes de, sobre essa mesma base, criar, senão a prosperidade, a fartura e uma vida social alegre e satisfatória. O outro traço a ressaltar é a capacidade da ordem vigente, armada de polícias e exércitos, de calar todos esses clamores para reimplantar a tristeza da ordem latifundiária famélica e degradante. (RIBEIRO, 2013, p. 393)

Assim, a famosa “cordialidade” com que caracterizam o povo brasileiro, se se pode refletir em alegrias expansivas e chamegos intimistas, também podem surtir em passionais explosões violentas, e com reprimendas ainda mais duras.

Brasil: uma história de dependência

No Brasil, o princípio da propriedade privada foi sempre muito circunstancial. Ou seja, aconteceu com a propriedade privada o mesmo que aconteceu com todos os outros direitos ditos naturais: valia para uns, não valia para a maioria.

Assim aconteceu, inicialmente, com os nativos desta região que hoje se denomina Brasil - não que, obviamente, houvesse uma doutrina filosófica entre esses nativos que garantisse o direito à propriedade como algo inalienável. Mas se, então, a terra não lhes pertencia, eles pertenciam à terra, algo que não precisava ser dito para ser percebido, tendo em vista as consequências devastadoras que esses povos sofreram quando da ocupação e dominação que exerceu o estrangeiro aqui - principalmente o colonizador português.

Desta feita, o genocídio indígena - e quando não genocídio, a compulsória absorção cultural e/ou escravização - foi um “mal necessário” para que a Coroa Portuguesa pudesse estabelecer raízes nessa terra que por muito tempo lhe renderia abundantes e suculentos frutos.

O período colonial foi fundamental para estabelecer as bases de uma estrutura política, econômica e social que continuaria ditando as regras do jogo mesmo após a Independência brasileira e a transformação do Brasil Imperial em Brasil Republicano. Nesse sistema, a economia estaria fadada a obedecer às regências do soberano, e a depender dele, numa constante confusão entre o público e o privado.

Tudo parte das origens: o rei é o senhor das terras, das minas e do comércio, no círculo patrimonialista em que se consolidou e se expandiu o reino. O pacto colonial não é mais que a expressão global do tipo de Estado dominante em Portugal. (FAORO, 2012, p. 259)

Esse mesmo soberano que controla e exige, também concede e privilegia, fazendo do Brasil Colônia uma extensão das políticas que já geriam a metrópole. Uma estrutura que sustentava um custoso cabedal de funcionários, distribuindo privilégios e cargos públicos a nobres membros da corte e opulentos fidalgos, em um aparelhamento administrativo que tinha o controle dos rumos econômicos e de quem nele ocuparia as melhores posições.

Assim, a cada novo empreendimento econômico no Brasil, figuras ligadas à Corte é quem eram denominadas para a sua gestão, tendo, então, acesso às terras e aos estímulos necessários. Porém, como contrapartida, devolveriam grande parte dessas riquezas geradas em forma de tributos, exclusividade de comércio e exportação para as garras sedentas da Corte. Foi assim inicialmente com os engenhos - os quais puderam adquirir uma relativa independência em relação ao soberano, foi assim com as minas (que não puderam se livrar das castigantes imposições governamentais), e com toda a forma de comércio vantajoso que pudesse acontecer no Brasil, com a metrópole tendo uma quase exclusividade em relação ao mercado interno e aos produtos de exportação.

O Brasil seguiu desta forma, dependente de estímulos e concessões externas, não sendo possível a economia sobreviver sem se apoiar, quase que totalmente, nos benefícios governamentais. A estrutura essencialmente agrária e a monocultora deixaram nosso mercado à mercê do mercado mundial e a nossa população à mercê do sucesso econômico dos latifundiários - caso contrário, toda sorte de dependentes e agregados destes senhores ficaria em meio à miséria.

O centro do interesse econômico se desloca do lucro do empresário para o beneficiário dos tributos, o velho, tenaz e rígido estamento. Esta situação mostrará o panorama de muitos séculos, de uma lavoura e uma indústria estéril, que, na decadência, deixará, nos campos e nas cidades, o desolado empobrecimento. (FAORO, 2012, p. 273)

Nessa estrutura desigual em que se formou a economia brasileira, o acesso à ascensão econômica é seletivo. Uma ínfima classe opulenta privilegiada pelos estamentos prospera num regime em que o Estado se torna uma mera extensão da vida particular. Onde aqueles que operam um cargo público não conseguem distinguir o domínio público do domínio privado, e fazem da gestão política “assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário [...]”. (HOLANDA, 2013, p. 146)

Consequentemente, os financiamentos, os estímulos, as legitimações e as posses são todos privilégios que têm donos escolhidos a dedo. Com a concorrência desleal, a massa da população se vê destinada a se subordinar e carregar nas costas todos os custos dos luxos de um grupo muito restrito de “eleitos”.

Essa classe dominante empresarial-burocrático-eclesiástica, embora exercendo-se como agente de sua própria prosperidade, atuou também, subsidiariamente, como reitora do processo de formação do povo brasileiro. Somos, tal qual somos, pela forma que ela imprimiu em nós, ao nos configurar, segundo correspondia a sua cultura e a seus interesses. Inclusive reduzindo o que seria o povo brasileiro como entidade cívica e política a uma oferta de mão de obra servil. (RIBEIRO, 2013, p. 162)

Uma nação marcada pelo ferro e pelo fogo

Não é de se estranhar, assim, que um povo formado à base de uma extensa e generalizada desigualdade social - onde direito não era direito, mas privilégio, e onde ser humano podia ser objeto escravo - fosse marcado por intensos e sangrentos embates. As motivações étnicas, sociais, econômicas, religiosas e raciais podiam confluir nas mais diferentes combinações, com predominância de algumas motivações, de forma que, ao fim e ao cabo, se poderiam ver, em maior ou menor importância, todos (ou quase todos) esses elementos dentro de um só conflito.

Guerra do Contestado: a construção do conflito

A Guerra do Contestado, objeto principal deste estudo, insere-se dentro dos conjuntos de conflitos que se agravaram no Brasil ao longo dos séculos como uma insurreição fortemente marcada por motivações sociais, políticas, econômicas e religiosas. Os elementos étnico e racial não ficavam tão evidentes pela grande variedade da configuração social dos sertanejos rebeldes, cujos membros provinham de mestiçagens de brancos, índios e negros, assim como de imigrantes europeus.

Assim, apesar dessa certa variedade étnica, algo em comum a todos esses sertanejos ligou-os a uma causa compartilhada, pois que, como frutos de uma mesma política de colonização, estavam esses sertanejos atrelados a um sistema econômico latifundiário de acesso restrito.

A história do Brasil foi marcada por meras importações de modelos externos que nunca levaram em conta as especificidades nacionais: este é também o caso do Brasil na Primeira República, período durante o qual a guerra eclodiu. Tendo isso em vista, observamos uma continuidade nessa linha de implementação no país, de uma forma política que só na sua superfície representava alguma espécie de mudança, enquanto, no seu conteúdo, as relações de produção e as relações de poder continuavam basicamente as mesmas.

Desta feita, o molde republicano baseado em eleições e descentralização de poder, em que haveria uma relação entre os poderes municipais, estaduais e federais, transladado a uma realidade social baseada no latifúndio e na extrema desigualdade social e política, despontou no que ficou conhecido como coronelismo. Ou seja, uma relação de dominação que já existia antes do período republicano foi apenas traduzida por um mandonismo local que atrelava forças aos meios oficiais de governo (principalmente com o governo estadual) num jogo recíproco de troca de favores em que a parte local reforçava a reprodução do poder oficial, enquanto o poder oficial legitimava as ordenações do poder local. Poder local este que afirmava seu poder, principalmente, na sua capacidade de levantar homens em armas e impor suas decisões e interesses a todos os agregados, posseiros e sitiantes que viviam ao seu redor. Assim sendo, o dito coronel nem ao menos precisava influenciar o voto dos seus dependentes - influência essa que quando acontecia era principalmente por meio da coerção -, já que as suas superiores forças físicas e políticas muito bem o possibilitariam fraudar as eleições, impondo assim, de qualquer maneira, a sua vontade.

O próprio termo coronel evidencia bem esta sempre presente confusão entre o público e o privado na história da política brasileira, já que os grandes fazendeiros locais recebiam esse título oficialmente pela Guarda Nacional, aumentando ainda mais o prestígio político e social destes homens. Isto é, “a Guarda Nacional ordenou e legitimou o poder de mando dos potentados locais”. (MACHADO, 2007, p. 101)

Sendo assim, posseiros, sitiantes, caboclos e toda sorte de agregados que estava sob influência desses grandes fazendeiros entraram, gradativamente, em um processo de perda de autonomia e de crescente subordinação, à mercê dos desmandos e das usurpações de suas próprias terras, sem necessidade que a posse tenha sido oficializada em cartório ou que alguma geração anterior já tenha feito daquele terreno seu lar. O coronel, que tinha à sua disposição tanto a força física quanto as benesses do poder jurídico, anexava aquela propriedade como sua - independente da existência ou não de um proprietário anterior. Isso sem entrar no mérito das frequentes grilagens, que regularizavam as terras roubadas dos sitiantes por meio do aparato legal.

A situação das camadas mais baixas da população já estava degradante e precária (a falta de acesso às terras, o evidente desprivilegiamento dos pequenos lavradores em relação aos grandes proprietários (geralmente pecuaristas), o despotismo dos coronéis, etc.) quando começou a se introduzir a ferrovia naquelas regiões.

A construção da linha entre União da Vitória e Marcelino Ramos, no Rio Grande do Sul, concluída em 1910, e o ramal leste, que ligava União da Vitória a Rio Negro, concluído em 1913, promoveram uma série de problemas para a região. A empresa concessionária responsável pela exploração da linha por 90 anos era a Brazil Railway, formada pelo magnata norte-americano Percival Farquhar com a contribuição de capitais ingleses e franceses, o qual, além da garantia de juros em caso de prejuízo, recebia como doação por parte do governo federal um trecho de até 15 quilômetros de terras de cada margem da linha. (PINHEIRO, 2007, pp. 142-143)

Concessões e benefícios ao capital estrangeiro dentro de território brasileiro nunca foram novidade. A relação de dependência (econômica, financeira, cultural etc.) em relação ao mercado internacional e a posição de retaguarda no que se refere aos processos de desenvolvimento e modernização sempre colocaram o Brasil em um constante estado de necessidade de abrir suas portas para que capitais privados externos introduzissem aqui seus negócios e, em contrapartida, usufruíssem dos mercados, dos recursos naturais e da mão-de-obra abundante e barata. O Brasil ocupava uma posição de vulnerabilidade e estava à mercê do grandioso (e sedutor) capital estrangeiro.

O Estado patrimonialista brasileiro, baseado em produções primárias voltadas para a exportação e com a sua ineficiência administrativa e burocrática - burocracia esta muito longe da burocracia weberiana, na qual os funcionários são de carreira e especializados, e o sistema jurídico oferece garantias aos cidadãos, jamais poderia sonhar em competir com os avanços tecnológicos e industriais de países como os EUA e a Inglaterra. Com a sua política de privilégios e favores - que facilitava a vida das elites e as poupava de uma tentativa de modernização que acompanhasse o desenvolvimento industrial - e com uma população predominantemente rural e pobre, os alicerces para uma industrialização e urbanização que garantissem o desenvolvimento econômico ficavam totalmente comprometidos. Resumindo, uma economia dependente em tudo do Estado não consegue tomar qualquer iniciativa sem apoio e estímulo estatal.

De qualquer maneira, ali estava a Brazil Railway, detendo em mãos não só a receita advinda da exploração do transporte ferroviário, como o direito legal de explorar 15 quilômetros de terras a partir de cada margem da linha ferroviária. Terras estas que, como era de se prever, já estavam em muitas partes ocupadas. Desta forma, em paralelo às atividades de construção da ferrovia, a Brazil Railway, delegando à sua subsidiária Brazil Lumber and Colonization, cuidava da exploração de madeiras nobres das regiões do Paraná e de Santa Catarina (como a araucária, a imbuia, o cedro e o jacarandá), assim como expulsava (e se preciso à base da força, já que a Lumber possuía um grande contingente de homens armados) os pequenos proprietários de terras (fossem estas regularizadas ou não) que estivessem em seu caminho. Após a exploração das terras, a Lumber ainda tinha a intenção de revendê-las a imigrantes estrangeiros ou aos filhos de colonos que haviam nascido no país, completando, assim, a total expulsão dos antigos moradores.

Um exemplo revelador desta confluência do poder público com o capital estrangeiro privado está nessa passagem do livro “Lideranças do Contestado”, do historiador Paulo Pinheiro Machado:

A Brazil Railway e sua subsidiária Lumber desenvolveram um cuidadoso processo de cooptação das lideranças políticas dos respectivos estados para evitar embaraços legais e obter facilidades administrativas. O vice-presidente do Paraná, Affonso Camargo, foi advogado da Lumber enquanto exercia este cargo público. O coronel Henrique Rupp, superintendente municipal de Campos Novos, foi inspetor de terras da Brazil Railway também na mesma época em que exercia seu mandato, no período em que esta companhia expulsava os posseiros e proprietários legítimos do Vale do Rio do Peixe. O jovem advogado lageano Nereu Ramos, filho do ex-governador Vidal Ramos, era, em 1916, representante oficial dos interesses da Lumber junto ao governo de Santa Catarina. (2007, p. 149)

Os caboclos e posseiros afetados não tiveram a menor chance de defesa, pois duas grandes potências de força e poder unidas contra eles resultaram na intensificação da já instável situação social desse campesinato. Além da expulsão, a exploração daquelas terras pela Lumber também resultou num grande prejuízo econômico ao sertanejo, pois as madeiras derrubadas que eram arrastadas acabavam passando por cima dos ervais nativos, destruindo não só a erva-mate, mas também a fonte de subsistência de várias famílias caboclas.

Com todo esse cenário de desapropriação e exploração como plano de fundo, não é de se estranhar que os sertanejos da região do Contestado tenham se revoltado.

Foto - Resistência sertaneja tomba locomotiva em ferrovia ao longo da linha São Paulo-Rio Grande

Fonte: SOARES E SOARES, 1987.
 

Guerra do Contestado: discursos e relações de poder

O próprio fato de as fontes históricas produzidas sobre a guerra serem, na maior parte das vezes, escritas por pessoas que eram contrárias ao movimento rebelde dos caboclos, já nos revela muito das relações de poder existentes entre os sertanejos e os poderes locais e oficiais. Ou seja, o silêncio histórico da voz cabocla nos diz muito sobre a condição social desigual em que se encontrava o rebelde do Contestado.

Foi essa posição subordinada, longe dos meios oficiais de poder e comunicação, que permitiu a construção de imagens totalmente negativas da figura do caboclo e deslegitimadoras do movimento do Contestado. Os termos usados para descrevê-los, como “fanáticos”, “bandidos” e “ignorantes”, revelam, mais uma vez, a estrutura de poder em que estavam inseridos. Estrutura esta que, mesmo durante a revolta armada e algumas importantes vitórias dos caboclos sobre as forças locais e estaduais, ainda assim conseguiam mobilizar discursos e elementos simbólicos que diminuíam a legitimidade da causa cabocla. Neste discurso, estas não eram pessoas que tinham sido constantemente exploradas e desapropriadas e que um dia resolveram dizer “chega!”, mas sim fanáticos, que por serem tão ignorantes ao ponto de acreditarem na liderança de um monge que já morrera, e se basearem fortemente numa religião falsa e extremista, haviam armado este tal motim. Seguindo este mesmo raciocínio, como os motivos caboclos não tinham fundamento na realidade, a luta armada e a invasão de terras de coronéis só podiam ser frutos do banditismo desses sertanejos, da feição bárbara do movimento. Ou seja, todos os discursos voltados à causa cabocla tinham a constante e deliberada função de deslegitimar a insurreição e legitimar a ação de aniquilação dos caboclos por parte do Governo Federal. Assim, o caráter subversivo desta guerra faz com que as autoridades tenham que, imediatamente, voltar a restaurar a “ordem” anterior.

Em relação ao caráter santo da guerra, Darcy Ribeiro diz:

Esses “monges”, tornados conselheiros e guias dos posseiros, tanto em assuntos religiosos como em qualquer outra matéria, foram seus líderes quando os conflitos começaram a eclodir. Sob sua liderança, a luta pela manutenção da posse contra uma ordem legal que os queria expropriar se transforma numa guerra santa que se desenvolve, simultaneamente, em duas esferas. Primeiro, a dos combates contra as tropas estaduais e, mais tarde, contra o Exército nacional. Segundo, o esforço de reordenação da sociedade segundo valores hauridos em profundos estratos da tradição popular, respeitosa da propriedade dos fiéis que a possuíam anteriormente, mas afirmatória do direito de cada um aos frutos de seu trabalho, tendente a uma economia comunitária regulada por uma organização de trabalho que prescrevia as atribuições de cada pessoa e por um sistema redistributivo que a todos assegurava os bens essenciais. (RIBEIRO, 2013, p. 391)

Assim, os caboclos, conscientes da sua condição de exclusão, miséria e exploração, armaram um movimento que queria pôr fim a essa situação e fazer emergir, em terra, o paraíso que os esperava do outro lado. Quiseram fazer a sua própria ordenação social, baseada nos seus valores e na sua visão de mundo. Tarefa esta que, por seu caráter inicialmente bem-sucedido e subversivo em relação ao status quo, foi violentamente reprimida, num genocídio que não poupou idosos, crianças ou gestantes.

A aniquilação de toda uma população campesina se instaurou pelo próprio caráter da Guerra do Contestado, que não foi uma mera insurreição de “fanáticos”, mas uma guerra civil de um campesinato usurpado contra os agentes do mandonismo local e contra o poder oficial que legitimava a propriedade latifundiária que tanto os explorava.

Conclusão

Tendo tudo isso em vista, é possível perceber como as características de formação e destruição deste movimento de sertanejos são emblemáticas do modo de formação do Brasil. A Guerra do Contestado foi fruto do constante privilegiamento pelo Estado de pequenos grupos de grandes latifundiários, proprietários estes que se encontravam numa posição de dominação sobre a grande maioria da população local. A histórica concessão de espaços brasileiros para o aproveitamento estrangeiro esteve também presente como uma das causas do movimento, como fica explícito neste trecho do historiador Pinheiro Machado:

Um bilhete achado junto a um “fanático” morto em combate pode exemplificar essa consciência [de que o governo brasileiro agia privilegiando estrangeiros]: “Nóis não tem direito de terras, tudo é para as gentes da Oropa”. Porém essa visão nacionalista não resvalou a xenofobia; vários imigrantes e descendentes de imigrantes integraram os redutos rebeldes. (MACHADO, 2007, p. 152)

O fato de o Brasil importar modelos políticos e sociais que não levam em conta o seu próprio contexto também esteve presente nas causas do conflito do Contestado. A história de dependência brasileira também em relação a sistemas teóricos e intelectuais despontou ali, mostrando ainda a necessidade de se produzir teorias sociais e políticas nacionais que levem em consideração a nossa formação e as nossas especificidades.

Por fim, a mesma desigualdade de forças nas relações de poder entre os pelados e o mandonismo local atrelado ao governo oficial, que possibilitou a construção da imagem cabocla como bárbaros, bandidos e fanáticos, pode ser encontrada na justificação racial da escravidão pelos senhores de escravos, políticos e intelectuais. A visível desigualdade entre os grupos possibilitou a construção da imagem do negro e do índio como homens inferiores, preguiçosos, não muito dados ao trabalho, entre outras características negativas. Isto é, os elementos simbólicos presentes nos discursos que procuram legitimar uma situação de desigualdade fazem parte das diferentes narrativas produzidas no (e sobre o) Brasil, nas quais a caracterização negativa do “fanático” é mais um emblema dos processos de dominações característicos da formação brasileira. O recurso discursivo é mais uma das armas das elites nacionais contra toda essa massa de gente que forma o povo brasileiro. E esse sintomático silêncio dos revoltosos (já que eles não tinham acesso aos meios oficiais de comunicação) nos diz muito sobre os tantos outros grupos que foram calados nesse processo de construção da narrativa da história nacional, protagonizado pelos grupos dominantes de políticos e colonizadores.

Notas

1 - A Guerra de Canudos foi um conflito civil que se desenvolveu no sertão da Bahia.

2 - A Cabanagem foi uma revolta popular que ocorreu na antiga província do Grão-Pará.

3 - A revolta dos Muckers foi um conflito instalado na atual cidade de Sapiranga, no Rio Grande do Sul.

4 - Os índios nativos das regiões onde ocorreu a Guerra do Contestado eram pertencentes aos grupos caingangues e xoklengs, exterminados pelos colonizadores que se instalavam naquelas localidades.

5 - A necessidade que os empreendimentos privados nacionais têm de se apoiar em estímulos estatais fica bem nítida no caso da industrialização tardia do Brasil (na década de 1950, no Governo Vargas), que precisou de um impulso do Estado, com a implantação de indústrias nacionais de base e incentivo financeiro.

REFERÊNCIAS

FAORO, R. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Globo, 2012.

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

LEAL, V. N. Coronelismo, Enxada e Voto: O município e o regime representativo no Brasil. 7a edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

MACHADO, P. P. Lideranças do Contestado. Campinas: Unicamp, 2007.

RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.

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