Primeira República

Panorama Geral da Guerra do Contestado

1912 - 1916

A Guerra do Contestado foi um evento que envolveu diversos interesses políticos, sociais e econômicos. O Brasil vinha passando por um processo de definição de limites políticos e ocupação do interior, quando a monarquia - já pressentindo seu eminente declínio influenciado pelo contagiante liberalismo econômico que vinha arrebatando os estados absolutistas por estes serem menos rentáveis - num último ímpeto de sobrevivência, disseminou pontos de apoio e controle pelo território nacional. O século XIX estava por terminar e grande parte do território nacional não havia sido colonizado e interligado entre si.

O litoral brasileiro foi o primeiro a sentir o efeito da chegada dos portugueses e suas burocracias. A abertura dos portos e a disseminação do poder da Lei e de seus homens trouxeram muitas mudanças para quem vivia no entorno das cidades que se fundavam na orla. Porém, a maior parte do território continuava distante das autoridades legais, tendo como referencial de ordem derivada do contato das missões jesuítas do século XVIII.

Até o século XVII, o território em que se deu este evento foi motivo de embate entre a monarquia portuguesa e espanhola por possuírem pouco conhecimento do que se passava nestas áreas. Hoje sabemos que esta área era habitada pelos índios Gê, e somente os caçadores de índios e tropeiros que atravessavam o território em busca de riquezas como ouro ou mão-de-obra indígena escravizável tinham domínio do território. Com o passar dos anos, o homem típico do planalto passou a se chamar caboclo ou jagunço, mas ele não possuía título de propriedade, pois mesmo as terras desocupadas eram reservadas aos coronéis do planalto ou aos políticos do litoral.

O planalto contestado foi cenário marcado pela presença de indivíduos das mais variadas origens e pela intensa circulação de pessoas e mercadorias que alimentavam demandas por animais de carga e criação desde o Rio Grande do Sul até São Paulo. O trajeto era longo e tortuoso, sendo criada uma Rota, o Caminho das tropas

que trespassava a região do Contestado e o sul do Paraná. Ao longo deste trajeto instituiu-se uma estrutura fiscal para recolher os tributos que incidiam sobre a entrada de animais na província de São Paulo. Tais unidades fiscais arrecadavam quantias para os cofres das províncias por onde os animais passavam. O comércio trazido a reboque pelo Caminho das Tropas passou também a ser visto pelas províncias como tributável, fato que gerou conflitos relacionados à colocação de barreiras fiscais que pretendiam a taxação dos produtos comercializados pelos tropeiros, como, a título de exemplo, a erva-mate. Esses conflitos resultantes do processo de tributação incorriam especialmente em regiões nas quais ainda persistiam indefinições acerca dos marcos  fronteiriços, tal como o planalto contestado e o sul do Paraná. (TOMPOROSKY, 2013)

Foi apenas após esse momento em que se desperta o interesse pela região e começam os conflitos, pois a população não foi consultada sobre o que seria feito na região, sendo retirada à força dos terrenos que seriam utilizados para a construção da ferrovia. Referiam-se aos habitantes como jagunços.

(...) índios, mansos e selvagens, negros dantes escravos, depois libertos, imigrantes acaboclados, gaúchos maragatos, egressos das hostes de Gumercindo Saraiva, foragidos da ditadura castilhista, fazendeiros, ervateiros, roceiros - toda essa massa humana é que vai formar o exército dos chamados "fanáticos" do Contestado. Faltava a esse conglomerado de classes e etnias o enquadramento institucional, a essência de uma sociedade agrária, um sistema organizado de colonização e propriedade de terra. (WERLING, [et al], 2013)

Quando a República Velha foi instituída, no ano de 1889, o Brasil encontrava-se em uma posição de significativa subordinação e dependência de fatores externos. O principal objetivo dos primeiros republicanos era o de modernizar o país por meio de grandes obras públicas, tais como a ampliação da malha ferroviária, a qual já vinha sido construída como maneira de interligar o interior centro-sul produtor de café do país com os portos de exportação na costa. Com tamanha pressa em trazer a modernidade para o solo brasileiro, nossos presidentes importaram também dívidas ao recorrerem a empréstimos estrangeiros. Campos Salles,

Recorreu a empréstimos externos (emprestados pelos ingleses) para cobrir a alta dívida, fazendo assim com que os ingleses preocupados com o não pagamento da dívida por parte do Brasil, renegociasse um acordo para que não saíssem de mão abanando. Caso o Brasil não tivesse como pagar entrava em vigor, o acordo denominado funding loan, que dava aos ingleses o direito de empossar toda a receita gerada pelas alfândegas estatais e da Estrada de Ferro Central do Brasil. (EVOLUÇÃO BRASILEIRA, 2013)

A empresa ferroviária que havia sido escolhida para realizar nos termos acordados a obra, teve a garantia de que os terrenos utilizados para a construção das linhas férreas seriam concedidos para "construção, uso e gozo" de quem estivesse encargo por este empreendimento. Porém, a população, quem mais sofreria os efeitos da modernidade imposta, via os trens e a construção da ferrovia como monstros destruidores, pois não entendiam de onde vinham nem para que serviam: "dragão de ferro, que solta fumaça pelos campos e fogo pela boca", alguns se referiam. 

As disputas entre Santa Catarina e Paraná iniciaram nos anos finais do século XIX pela área de 40 mil km² com cerca de 40 mil habitantes que compreendia os atuais municípios de Lages, Curitibanos, Porto União, Itaiópolis, Rio Negro, União da Vitória, Campos Novos, entre outros. Em 1904, o Supremo Tribunal Federal (STF) decide em favor de Santa Catarina nas disputas de fronteiras. Entretanto, Paraná clama o direito de posse e se recusa a acatar a decisão do STF, assumindo a responsabilidade para com os habitantes da região.

Em 1908 Percival Farquhar, através de sua holding Brazil Railway Company, adquiriu o controle da Companhia de Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande - EFSPRG. Antevendo o enorme potencial de lucro que poderia obter com a exportação de madeira das densas florestas centenárias de araucária existentes na região (sob a copa das araucárias havia imbuias com mais de 10 metros de circunferência) - em terras que viria a receber como doação do governo federal, nos termos do contrato de concessão da ferrovia - já fundara, anteriormente, a Southern Brazil Lumber & Colonization Company, que se tornou conhecida como a Lumber.

Simultaneamente, com o avanço das obras, a população que era expulsa de casa compulsoriamente se volta ao âmbito que lhes acolheriam: a esfera religiosa. O nome José Maria, que ecoou pelo sudeste e sul do Brasil antes dos conflitos contestatórios, representa um monge que era bem popular na região desde 1840. Este primeiro ficou conhecido como Santo João Maria Agostinho, por seu andar descalço, ser vegetariano e com uma religiosidade curativa que cativou seguidores. No entanto, se a relação do primeiro monge com a Igreja era de amizade e colaboração, não podemos afirmar o mesmo em relação às autoridades civis.

Do ponto de vista militar, o surgimento de um movimento de cunho religioso, mesmo com fins pacíficos, que concentrasse a população desvalida da campanha, seria totalmente inoportuno. (MACHADO, p. 156).

Mais tarde foi disseminada a lenda que ele encarnou em outras pessoas. Outro monge, aproveitando seu renome, João Maria de Jesus, era marcadamente distinto, por exemplo, teve uma relação hostil com o clero católico, fazia batizados e propalava um discurso apocalítico com grande receptividade no planalto. (MACHADO, p. 157)

Foto do Monge João Maria
Fonte: Reprodução/ BATHKE JR.
 

A figura de José Maria é mais uma figura de nebuloso passado, pouco se sabe sobre suas origens. Sua aparição pública na região contestada ocorreu apenas no ano de 1912, onde desencadearam diversos episódios que precipitaram a guerra sertaneja. Curandeiro, incitador ao fanatismo, conspirador republicano, etc. Inúmeras opiniões foram proferidas sobre esta figura. Seu conhecimento de manipulação de ervas medicinais e sua reputação de tratamentos eficientes acompanhou seu trajeto pelo interior do Paraná até estabelecer-se em Campos Novos, onde foi convidado por líderes comunitários da região de Taquaruçu, para comparecer a uma festa regional, a famosa Festa do Bom Jesus, que contava com a presença de muitos sertanejos expulsos pela Lumber e Brazil Railway, gente que não tinha pra onde voltar. (MACHADO, p. 171).

Sua presença na região repercutiu de forma inesperada, atraindo mais trabalhadores desempregados, doentes e errantes ao arraial de Taquaruçu, fazendo com que os chefes políticos opositores de Curitibanos, Henriquinho Paes de Almeira e Coronel Francisco Ferreira de Albuquerque (este último amigo de Vidal Ramos), tivessem que tomar uma decisão a respeito, trazendo José Maria para seu campo ou torná-lo seu antagonista.

Naquele período, muitas pessoas de destaque na política regional não deram crédito às atribuídas intenções de restauração monárquica por parte dos sertanejos que acompanhavam José Maria. Conta apenas que, durante a festa do Bom Jesus em Taquaruçu, um desafio de repentistas, numa porfia, foi vencida pelo cantador que defendeu a monarquia como "Lei de Deus", conforme falava o sumido João Maria.

Chamavam-no de saudosista da monarquia, mas nota-se em relatos que ele se referia mais a um Reino de Deus do que de fato Império Português, porém de qualquer maneira, para o governo do Estado reprimir o ajuntamento de Taquaruçu já era suficiente o fato de que havia uma crescente concentração de sertanejos pobres, que não se subordinavam às autoridades locais. Foram mortos 9 mil pessoas nesta repressão à população que não acatava o despejo unidos tendo o monge como liderança de resistência.

A Guerra muitas vezes é chamada de Guerra dos Pelados, pois no conflito, a população nativa raspava os cabelos como maneira de determinar e se identificarem propriamente na hora do conflito daqueles que foram contratados pelas empresas para lutarem pelo território. Quando comparados aos guerrilheiros barbudos que vinham por mando da empresa e dos coronéis que mandavam nas terras, os que restaram do conflito que matou o monge.

A questão dos limites entre os Estados de Santa Catarina e Paraná persistiram sem um desfecho até 20 de outubro de 1916, quando terminou a Guerra do Contestado e foi celebrado o Acordo de Limites PR/SC. Conselheiro Mafra e Felipe Schmidt são nomes que se destacam na resolução do conflito por pressionarem no Congresso, que na época se situava no Rio de Janeiro, a formulação e efetivação de um acordo de limites.

Trazer à tona a história da Guerra do Contestado é de suma importância por representar o conflito que empresas privadas aliadas ao poder governamental encontraram e, até certo ponto, ainda encontram, ao aplicarem seus planos de negócios em localidades, alterando profundamente a composição social, política, econômica e ambiental destes. A empresa da ferrovia acabou sendo responsável pelo povoamento ao imporem o termo de contratamento trabalhadores brancos, de preferência europeus. A área que se deu este evento ficou marcada desde então pela relação que o poder do Estado associado a interesses privados estabeleceu na configuração do território e da sociedade.

Sugestão de filme: A Guerra dos Pelados (Guerra do Contestado), duração de 1min e 33s, dirigido por Sylvio Back, 1970. Disponível em: https://bit.ly/349bck7 Acesso em: 08 jun. 2015.

REFERÊNCIAS

BATHKE, Wille Jr. Contestado: O Trem Gerou a Guerra.... 2011. Disponível em: <http://memoriapolitica.alesc.sc.gov.br/rODgzNjA=>. Acesso em: 30 mai. 2019.

EVOLUÇÃO DA ECONOMIA BRASILEIRA. Brasil - 1900 a 1920. 2013. Disponível em: <http://memoriapolitica.alesc.sc.gov.br/rOTI4MTQ=>. Acesso em: 8 jun. 2015.

MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado. São Paulo: Unicamp, 2007. 397 p.

TOMPOROSKI, Alexandre Assis. O polvo e seus tentáculos: A Southern Brazil Lumber and Colonization Company e as transformações impingidas ao planalto contestado, 1910-1940. 2013. 282 f. Tese (Doutorado) - Curso de História, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. Disponível em: <http://memoriapolitica.alesc.sc.gov.br/rOTI4NDY=>. Acesso em: 8 jun. 2015.

WERLING, Arno; ZEFERINO, Augusto César; MOURA, Aurelia Pinto de (Org.). 100 Anos do Contestado : Memória História e Patrimônio. Florianópolis: Memorial MP SC, 2013. 446 p. Disponível em: <http://memoriapolitica.alesc.sc.gov.br/rOTI4Njc=>. Acesso em: 26 ago. 2019.

Veja também

A Guerra do Contestado

1912 - 1916

http://memoriapolitica.alesc.sc.gov.br/uploads/imagem/arquivo/FamA_lia_de_Sertanejos.jpeg

Foto - Família de sertanejos se rende às forças oficiais em Canoinhas/SC, durante a Guerra do Contestado, em 1915
Fonte: Claro...

Memória Política de Santa Catarina